8.4.05

deus é traição

para as minhas amigas que estiveram na bolha.
para o érico.
para a céci. para o bocous.
para meu avô, morto e inventado.

"Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. (...) Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho mãe de tudo o que existe. (...) O sentimento era novo pra mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito medo, e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. (...)
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. (...)
... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. (...)
É porque eu sempre tento chegar pelo meu modo. É porque eu ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria- e não o que é. É porque ainda não sei ceder. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque eu talvez precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. (...)
Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe."

"Perdoando Deus", Clarice.

3 O mundo em ti:

Blogger a dani said...

veja só, agora tenho um blogue!

3:48 PM  
Blogger Claudio Costa said...

Belíssima e comovente a citação da Clarice. Outras coisas boas eu li, ainda, nos posts anteriores.

8:32 PM  
Blogger arcwork said...

simplesmente maravilhoso!!!

9:51 PM  

Postar um comentário

<< Home