31.5.05

dessa vez não vai entrar na contra-mão, hein

fogo eterno pra consumir o inferno fora daqui

Putaqueopariu que cansaço, um ano inteiro que foi, pronto, hoje acabou e dando na cara, tipo"segue a fisga". Foi maio que se despediu.

-parece que sim, né?
-espero que sim.
-fechou, fechou sim.

Mamãe disse hoje cedo. Ela fecha a roda. Nem acredito que acreditamos nisso. Joguei a chave fora. Menina, amanhã de manhã quando a gente acordar, nem te conto! tiau tiau acabou.

31 de maio

não presta, não presta

29.5.05

Vuelvo al sur

Não vou contar de como foram todos fofos comigo na capital, nem vou recomentar que Brasília foi instituída por um maia intergalático, não não... gosto de blob que conta causo: então:
estava no aeroporto de Brasília três horas atrás, esperando sozinha o meu vôo duas horas atrasado, quando já no salão de embarque descobri uma livraria e um café. Perambulei pela livraria, descobri uns dois livros legais que foram lançados, mas não comprei. Em homenagem a um amigo não toquei na Lya Luft, mas não pude deixar de me nutrir com o provérbio de um rabino falando de afetividade nos negócios(!): "O bolso que mais pesa é o bolso vazio". Aproveitei pra folhear todos do tal do "Código Da Vinci", mas acabei optando por aquela revista cultural super-mega-hit-fresca, por causa da capa bonita, afinal deixei de comer um crepe chamado "Bob Dylan" na sexta, porque preferimos o "Marcello Mastroianni" seguido pela "Brigitte Bardot". Levei também um livro do Jorge Amado(?).
Saindo da livraria, fui ocupar o resto do tempo tomando café, aproveitando pra remendar minha cabeça que só dormiu uma hora de ontem pra hoje. Quando me sentei, tinham uns gringos meio distantes, uma família mineira mais adiante, mas quem estava na mesa exatamente ao meu lado? Um político, claro! não podia sair da capital sem ver pelo menos um! mas a prova de que o acaso para o alienígena não é tão óbvio é que, apesar do Jorge Amado, não era painho, não. Aliás, painho não vai e quando vai, só vai de jatinho.
Era ninguém mais que Heloísa Helena. Sim, meus caros (amigos). Agora vocês me dirão que ok, óbvio, que só a obsessiva da Heloísa Helena estaria em Brasília num domingo às 8:00 da manhã. Mas o que vocês não sabem é que ela também tinha passado na livraria, onde aproveitou para comprar umas revistas. Veja? Nova? Carta Capital? Não, queridos, Heloísa Helena estava com vários da Turma, mas a preferência no momento era o "Chico Bento" mesmo.

25.5.05

te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo

Confissão

Não amei bastante meu semelhante,
Não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro -vinha azul e doido-
que se esfacelou na asa do avião.

(Drummond; pro Márcio, que é gentil também porque se lembra de mim. Ele me despregou e orgulhou quando me disse que a minha humanidade é anacrônica. E me dá uma sensação de duvidosa felicidade: por que só da tristeza eu duvidaria?)
I´ve seen a dying eye
Run round and round a room
In search of something, as it seemed,
Then cloudier become;
And then, obscure with fog,
And then be soldered down,
Without disclosing what it be,
´T were blessed to have seen.

***

It might be easier
To fail with land in sight,
Than gain my blue peninsula
To perish of delight.

(Emily Dickinson)

O mote e a glosa

Talvez haja em algum lugar vida tranqüila
e um mundo cálido, alegre e transparente...
Lá o vizinho conversa com a mocinha
por cima da cerca, ao entardecer,
e só abelhas ouvem seus ternos sussurros.

Mas nós, aqui, vivemos vida solene e difícil,
respeitando os ritos de nossos amargos encontros,
em que o vento, com a sua insensatez,
interrompe a frase apenas começada.

Por preço algum ousaríamos mudar a suntuosa,
granítica cidade de glórias e desventuras,
os gelos refulgentes de amplos rios,
os sombrios, sinistros jardins
e a voz da Musa, apenas perceptível.

23/6/1915


(Anna Akhmátova)
"Você não divide a Física ou a Química segundo categorias raciais ou religiosas. Não põe as descobertas dos metodistas ou dos alemães numa categoria e as dos episcopais, americanos ou italianos, em outra."
(Pound.)

23.5.05

Afinal, um blog deve ser usado para assuntos pertinentes (somente)

I. da Série: Carne-fria:
i.i. me lembra a vovó
i.ii.me dá vontade de coca-cola
i.iii me deu frio

22.5.05

Notícias crepusculares

Márcio, caríssimo,

Como invejo a sua disponibilidade de escrever para os outros e sua coragem de enviar para todos os seus amigos a mesma notícia. É um modo bonito de ser, o seu, sabe? Claro que deve ter gente que deve te achar um tonto, mas tonta é a bronca metonímica do Big Brother que essa gente "intelectual" tem de toda espécie de exposição de si. Estou cansada desse papo de que tudo "já era": que os autores só sabem narrar em primeira pessoa, que a literatura só sabe ser confessional, que, enfim, "todo mundo só faz tudo errado e que eu, mais um inconformado com a atualidade e dono das teses do correto: eu, eu? bem, o eu... oras! o eu é uma vulgaridade." Pois bem, vamos para a próxima estação: afinal, é possível falar de si sem ser vulgar e sem pretender a imortalidade (?) autoral. Busco meus alívios: preciso saber que é só mais uma escolha temporária. Além do que uma história precisa de um personagem. E também se fala sobre si quando se evita fazê-lo.

Claro, me justifico, porque estou retomando como possível falar sobre mim, perdoem-me os injustos. Tudo isso porque passei, quer dizer, estou saindo de uma fase (podia ser que nem o Mário Bros., né?) de absoluta impotência, mesclada com uma larga paranóia. Não sei ainda como começou, nem sei exatamente como é, mas interpreto com duas palavras terríveis: esgotamento e controle. Falando assim, parece cronograma corporativo: esgotamento de possibilidades de representação e interpretação de mim no presente, para assim, obter controle de mim, quero dizer, do que os outros pensam de mim, quero dizer, do que eu penso que os outros pensam de mim, quero dizer, do que eu sei que eles não pensam sobre mim, quero dizer, eles sabem de tudo, afvee! farta de semi-deuses em mim, cara, farta. E eu bem sei que a paranóia é, na verdade, algo que eu já sei, mas ainda não está completo de sentido, e, por isso, minha pesada cabeça cansada detalha como juízo de outro. Se você soubesse o quanto dialogo sozinha... É terrível, mas não será mais. Tudo eu, cara, tudo eu.: mas você sabe bem como é isso, girar em torno do seu próprio vazio, virar seu próprio estômago: dá um puta tédio só orbitar em você mesmo e sair dessa inércia dá uma preguiça...

Será que você quis me agradar quando citou justamente o poema que o Drummond escreveu "com o pensamento" em Ana C.? Ele, meu tudo. E você se lembra, claro, que meu blog antigo tinha o nome do livro dela. Você lembra também como eu gostava de me detalhar? Quem diria que isso voltaria a ser a minha saída... Ela foi fundamental nos meus últimos anos de Colégio, como uma amiga mesmo, alguém que me dizia tudo o que eu era, tudo o que eu sentia, tudo o que não me diziam. Depois andamos brigadas e ressentidas. Hoje tenho um certo medo do meu inevitável reconhecimento nela: sabe, não quero me suicidar, nunca: gosto de viver, pacas. O "A teus pés" é o único livro com o qual (até hoje, confesso) tenho uma relação de diário: escrevo ao lado dos poemas as datas em que o escrito ali faz mais sentido do que nunca, componho por cima, marco que chorei ou ri. Mas olha só, é tudo mentira, sou uma mulher séria & crítica, tá, não trataria nunca a literatura de maneira tão menininha vulgar! haha

Gostei muito também do que você disse, que sempre foi mais jornalista do que escritor. Eu não sou nem deles, nem daqueles, mas foi ótimo, porque me fez entender melhor você e também os jornalistas. Eu não, não tenho apego nenhum aos fatos dos jornais e tenho a sincera impressão de que eles ontem contaram a mesma notícia de hoje. A impressão aumenta quando as notícias são políticas ou econômicas, é tudo tão sujo! Sei que essas coisas têm um puta impacto em qualquer vida cotidiana, mas parece que eu desinvesti de vez, fazendo jus a mais uma injustiça que diriam da minha (?) geração (?).

Não sei como vai ser para você receber notícias minhas de repente. Eu acharia uma delícia. Estou achando escrevê-las: obrigada. É ótimo, afinal, nós nunca fomos amigos, dá tanta liberdade! Aliás, aquela sua carta, é linda, linda a idéia de que uma carta é necessária porque as coisas precisam ser abandonadas. Além do que... sabe, agora mesmo, estava no Pão de Açúcar comprando batata-palha, nutela, arroz, tomate e coca-cola (estou aprendendo que minha lista de supermercado não precisa ser nem de uma velha séria nem de uma adolescente transgênica) ... e, enfim, fiquei es-pan-ta-da e em pâ-ni-co de como estou parecendo uma pau-lis-ta-na e, pior, de Pinheiros!: meu, a mulherada aqui é articulada com olheiras, orgulhosa pelo uso do cachecol e daquela pele cinza, aquela cara de "ai, eu penso, tá, sofro, tá, licença, tá" e uma expressão que sempre pede desculpas, mas sem perder o ressentimento... Também por essas adoro receber notícias de um amigo em Niterói!

Queria te dizer mais, mas está suficiente e minha amiga que mora no 51 chegou. Mas me escreva, que eu estou voltando a confiar nas palavras. Parece que dessa vez quem manda aqui somos nós.

Um beijo,
Júlia.

ps. escrevo diretamente no meu blog, já que você vai ver mesmo e faz tanto tempo que eu não ordeno palavras em público... e, afinal, se eu te mandar por e-mail não vou ter coragem de postar ("publicar" seria um ultraje?)

just let me say who am i

green grass, blue eyes, gray sky, god bless
silent pain and happiness
i came around to say yes, and i say
Num domingo assim, tão médio de cinza e frio, não sei se me consola ou me piora a sensação de que a cidade inteira está como eu, desanimada e deprimida.
Empírico: dia seguinte igual dia anterior é coisa de encarcerado: sem horizonte nem nada, o meu é só metafórico. Não, não estou: sou livre: as rodas vão girando e as palavras voltam: significar é uma farsa necessária: que me soltem e, podendo, imediatamente arrebentem: me desobrigo da cata dos estilhaços.
Obrigada, mas pode deixar comigo, são minhas amigas, conhecemos nossas falhas: mas que juntas a gente consiga algo mais do que esse não, queridas, esse dizer que não. Completemos.

21.5.05

Os rios de um dia

Os rios, de tudo o que existe vivo,
vivem a vida mais definida e clara;
para os rios, viver vale se definir
e definir viver com a língua da água.
O rio corre; e assim viver para o rio
vale não só ser corrido pelo tempo:
o rio o corre; e pois que com sua água,
viver vale suicidar-se, todo o tempo.

2

Pois isso, que ele define com clareza,
o rio aceita e professa, friamente,
e se procuram lhe atar a hemorragia,
ou a vida suicídio, o rio se defende.
O que um rio do Sertão, rio interino,
prova com sua água, curta nas medidas:
ao se correr torrencial, de uma vez,
sobre leitos de hotel, de um só dia;
ao se correr torrencial, de uma vez,
sem alongar seu morrer, pouco a pouco,
sem alongá-lo, em suicídio permanente
ou no que todos, os rios duradouros;
esses rios do Sertão falam tão claro
que induz ao suicídio a pressa deles:
para fugir na morte da vida em poças
que pega quem devagar por tanta sede.
(dizer que é João Cabral)

20.5.05

TPM

Ser um filme do Almodóvar cujo personagem central é o crítico do 8 e 1/2.

17.5.05

a prova de que foi um português que traduziu o orkut

Sorte de hoje:
O seu raciocínio é perspicaz, prático e analítico.
Hoje, faz um ano que eu não fumo. clap clap clap a esquerda, clap clap clap a direita, mas eu ainda acho uma puxa! duma desconsideração com a galera. Há um ano atrás, hoje, eu estava com pneumonia, não morava nesse apartamento, tava achando a vida fácil e ela tava uma merda. Bom, hoje eu acho que a vida tá uma merda, logo? amanhã vou descobrir como está tudo tãããão fácil? afve.

15.5.05

onde canta o sabiá

take these broken wings and learn to fly

14.5.05

se eu recusasse os problemas como recuso os poemas
para o teu espaço
meu desvio
vago

foi com ana c. que reaprendi que o lirismo é como um creme de leite desconjuntado

canteiro de obras
em repouso
recuo súbito da trama

11.5.05

"A relação do insignificante com o insignificado se aloja agora num espaço onde nenhuma figura intermediária assegura mais seu encontro..."

o vagabundo quer guardar o mundo. justo em mim

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

o nome mais belo do medo

Tu me inventaste. Não há um ser assim,
e nem poderia um ser assim haver.
O médico não cura, o poeta não consola-
uma aparição te assombra dia e noite.
Nós nos encontramos num ano inacreditável
quando as forças do mundo se esgotavam;
tudo estava de luto, murcho pelo infortúnio
e só os túmulos mantinham-se frescos.
Sem as luzes da rua, o Neva era um breu
e na espessa noite eu estava emparedada...
Foi então que minha voz te chamou.
Por que ela o fez- ainda não entendo.
Mas vieste a mim, guiado pela estrela,
naquele outono trágico, entrando
naquela casa irremediavelmente arruinada,
de onde fugira um rebanho de versos calcinados.

18/8/1956

Anna Akhmátova.

8.5.05

o TEMA

Quem nesse papo de detestar datas celebrativas ainda está, não conhece a Música de Nossa Querida-Nação:

Vou abrir a porta,
Mais uma vez pode entrar.
É dia das mães,
Eu resolvi lhe perdoar.

Deus me ensinou praticar o bem,
Deus me deu essa bondade.
Vou abrir a porta para você entrar,
Mas não demore,
Que a outra pode lhe encontrar.

("Cuidado com a outra" de Nelson Cavaquinho e Augusto Tomaz Jr. por Francisco Buarque de Holanda-Cavalcante e Proença de Bulhões & Fragrâncias)

Um bom almoço em todo o país e aquele abraço na Vovó.

7.5.05

eu tenho mais de vinte muros

Incomoda é pouco, acontece que me atormenta aquele vermelho dos fundos dos carros. Detesto as lanternas. Diziam que era um lance de inveja, vejamos: contam-se os 19 carros, mas podem ser 5. Dificulto tudo enquanto diminuo a amostragem, porque prefiro só dois em um mesmo cruzamento, esse sabe-se lá para onde vão. E é preciso estar atento e com sorte, já que as lanternas falseiam um sinal de que os carros estão parados ou parando, juntos. Não sei vocês, mas os artifícios...

"ontem de manhã quando acordei
olhei a vida e me espantei
eu tenho mais de vinte anos
eu tenho mais de mil perguntas sem resposta"

Porém, até Ford, J. sabia que sinais são necessariamente simulações, toda espécie de aviso é insuficiente. Perde-se o freio... Ou sei lá, às vezes alguém desiste ou insiste e dá errado. E ferem-se. Com os carros ainda é assim, são muitos em um mesmo mecanismo.
Mas aah! gente sim que é gente! gente vem em um só, gente é sem lanterna. E não é por esquecimento que uns insistem e aparecem piscando, é, sim, com sábio desdém que amaciam o ruído. Luz é silêncio (que não faz segredo), olhe. E o silêncio e o segredo, cada um faz o seu. Ao seu modo. Porque assim temos a graça, a ansiedade, o cansaço, o suspiro e o sono. A falta de eternidade, enfim.


(com a memória no Calvino, "A aventura de um automobilista")

6.5.05

you know i work all day, to get you money to buy you things

cantei um samba pra ele, que sorriu e adormeceu
hoje eu vim, minha nega, querendo aquele sorriso
que tu entregas pro céu quando te aperto em meus braços
guarda bem minha viola, meu amor e meu cansaço

(Paulinho da Viola, o seu sucessor.)

3.5.05

A adolescente incognescível e seu lacaniano & A velha hipocondríaca e seu médico oriental

-Afirme o seu desejo.
-Mas...
-Afirme o seu desejo.
-Mas eu já fiz isso!
-Não me parece. Seu cenário, sim, é que é gigantesco.
-Cenário?
-É.
-Discursivo!
[risos de desgraça! desgraça!]

***
-É, desde que esfriou minha rinite está atacada.
-Hmm. E você tem sentido uma pressão no peito?
-No pulmão? Não. Meu pulmão está ok, nem tosse eu tenho.
-Não é do pulmão, é do peito oprimido. Estou falando de angústia.
-Ah, sim. Isso sim, o tempo todo, desde que eu nasci, doutor.
-Ok. Este é para seu nariz. Este é para o seu humor. Tome conforme a necessidade. Nariz coçou, tome 2. Espirrou demais, tome até 4. Berrou com alguém sem motivo, tome 2. Não consegue se decidir ou está impaciente, tome até 4.

[silêncio. embasbacada]

***
Apreendam, colegas, que é mais um caso da opressora invasão do Ocidente pelo Oriente. Assim, o profissional impertinente (e fofinho, tá, fofinho) que atualmente só me faz aflita, perdeu as B34-D53 e E39-J12, longitudinal. E agora?! vou ter que comprar meus Lévi-Strauss em edições de bolso ou o quê?!?

1.5.05

Maio gigantesco me olha, o terrível

Tarde de Maio

Como esses primitivos que carregam por toda a parte o maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh´alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa...
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.
Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E o que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Nem há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas do barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.


Drummond, em "Claro Enigma".